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Saúde e “camponia”

por Laura N. Pimenta

Em maio do ano passado, na ocasião da Oficina Regional Centro-Oeste e Tocantins, uma expressão trazida pelo agricultor familiar e educador popular, Neuzo Antônio de Oliveira, nos instigou: camponia. Para o Sr. Neuzo, o termo cidadania não é adequado para dizer das lutas por educação de qualidade, saúde, informação e igualdade de oportunidade das populações do campo, pois já em sua etimologia evoca a ideia de cidade – do latim civitas, que significa “conjunto de direitos atribuídos ao cidadão” ou “cidade”. Ao nos referirmos aos direitos e deveres das populações do campo, falar de (campo)nia seria mais assertivo.

A camponia diz dos direitos e deveres dos povos e comunidades que têm seus modos de vida, produção e reprodução social relacionados predominantemente com a terra. Neste contexto estão os camponeses, sejam eles agricultores familiares, trabalhadores rurais assentados ou acampados, assalariados e temporários que residam ou não no campo, e também as comunidades tradicionais como as quilombolas, ribeirinhas, entre outras.

Para falarmos de camponia, precisamos entender a realidade camponesa brasileira. Esta é resultado de uma história econômica, política e cultural fundada na concentração de terra, de riqueza, na exploração dos recursos naturais, na escravidão, no extermínio de povos indígenas, na marginalização de famílias e mulheres camponesas, mas também permeada por conflitos e por lutas populares de resistência ao modelo autoritário e repressor, a exemplo de Canudos, Quilombos, Ligas Camponesas e, hoje, os diversos movimentos sociais ligados ao campo.

O Brasil ainda apresenta iniquidades na efetivação de direitos que afetam substancialmente o cotidiano das populações camponesas. Estas, muitas vezes, vivem em situações de pobreza que não lhes permitem o acesso às mínimas condições e aos bens e serviços essenciais à sua saúde. Todavia, é preciso ressaltar que a pobreza não é somente a falta de acesso a bens materiais, mas, também, a vulnerabilidade que surge da ausência de oportunidades e de possibilidades de escolha entre diferentes alternativas. Desse modo, a pobreza se expressa na falta de emprego, de moradia digna, de saneamento básico, de alimentação adequada, de serviços de saúde, de educação e de mecanismos de participação popular na construção das políticas públicas, assim como na ausência de resolução de conflitos, o que agrava mais ainda a violência no campo.

Agrofloresta no Assentamento Contestado – Lapa/PR

Saúde e saneamento

As condições de saúde das populações camponesas, segundo os resultados de diversos estudos empreendidos pelo Ministério da Saúde, evidenciam uma situação mais precária se comparada com a da população urbana. O saneamento básico está entre os mais importantes fatores sociais determinantes dessas condições. Os dados do Censo Demográfico de 2010 mostram que apenas 28% dos moradores de domicílios rurais estão ligados à rede de distribuição de água, enquanto a maior parte dessa população (68%) capta água de chafarizes e poços (protegidos ou não), diretamente de cursos de água sem nenhum tratamento ou de outras fontes alternativas, geralmente insalubres. Sobre a destinação do esgoto, 53% da população camponesa utilizam fossas rudimentares, 13% utilizam fossas sépticas e apenas 3% estão ligadas a redes coletoras e 16% nem sequer apresentam um banheiro. Esse cenário contribui, direta e indiretamente, para o surgimento de doenças de veiculação hídrica, de parasitoses intestinais e de diarreias, as quais são responsáveis pela elevação da taxa de mortalidade infantil.

De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2006, o acesso à água imprópria atinge quase dois bilhões de pessoas no mundo, sendo que cerca de cinco milhões morrem anualmente por causa de enfermidades relacionadas ao saneamento básico, em especial quanto à água ou ao uso de água inadequada para o consumo humano. De acordo com o Plano Nacional de Saúde:

[…] no campo brasileiro são encontrados os maiores índices de mortalidade infantil, de incidência de endemias, de insalubridade e de analfabetismo, caracterizando uma situação de enorme pobreza decorrente das restrições ao acesso aos bens e serviços indispensáveis à vida (BRASIL, 2005).

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, 88% dos casos de doenças diarreicas são decorrentes do abastecimento de água insalubre, de esgotamento sanitário inadequado e de higiene deficiente. Assim, a melhoria do abastecimento de água reduz entre 6% a 21% a sua morbidade; a melhoria do esgotamento sanitário reduz a sua mortalidade em 32%; as medidas de higiene podem reduzir o número de casos em até 45% e, por fim, a melhoria da qualidade da água para o consumo, por meio de seu tratamento doméstico, pode reduzir de 35% a 39% os episódios dessa doença. Outros fatores – como a dispersão física dessa população, problemas socioeconômicos aliados à ausência ou à insuficiência de políticas públicas de saúde e de saneamento e a escassez de recursos aplicados nessas comunidades – têm contribuído para consolidar este grave quadro de carências, característico da área camponesa do país.

Outro aspecto importante, quando se trata da saúde da população do campo, diz respeito ao uso de agrotóxicos. Segundo dados apresentados nos Dossiês da Abrasco, o processo produtivo agrícola brasileiro está cada vez mais dependente dos agrotóxicos e fertilizantes químicos. Enquanto o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, o mercado brasileiro cresceu 190% nos últimos dez anos. Se o cenário atual já é suficientemente preocupante, do ponto de vista da saúde pública, as perspectivas são de agravamento dos problemas nos próximos anos. Os impactos à saúde pública são amplos e podem atingir vastos territórios e envolver diferentes grupos populacionais, como trabalhadores de diversos ramos de atividades, moradores do entorno de fábricas e fazendas, além de todos os consumidores de alimentos. Em textos anteriores discutimos como a agroecologia pode ser uma alternativa nesse cenário.

Assentamento Contestado – Lapa/PR

Políticas públicas

O Ministério da Saúde, premido por essas desfavoráveis condições de saúde das populações do campo e visando diminuir as iniquidades, quanto à redução dos agravos que incidem nas taxas de morbidade e mortalidade neste grupo populacional, instituiu o Grupo da Terra, composto por representantes de órgãos governamentais, movimentos sociais e convidados, que teve entre seus objetivos elaborar a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF) e definir estratégias para a sua implementação no País. Este grupo constitui-se como um espaço de diálogo entre os movimentos sociais e o governo federal, buscando dar respostas às suas demandas e necessidades de saúde.

A Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta tem, portanto, caráter transversal e envolve o compromisso das áreas, dos setores e das instituições que compõem o SUS. Sua operacionalização apoia-se na descentralização e regionalização das ações de saúde (considerando as gestões federal, estadual e municipal) e no controle social, fortalecendo a participação no SUS.

Além disso, em 2013, o Brasil aprovou seu Plano Nacional de Saneamento Básico, que determinou a criação de um Programa Nacional específico para o saneamento rural, o PNSR. O PNSR tem o enorme desafio de propor estratégias e diretrizes para, no prazo de 20 anos, universalizar o acesso da população do campo ao saneamento básico.

Essas duas políticas públicas são importantes passos para a efetivação do conjunto de direitos atribuídos às populações do campo, ou como diria Sr. Neuzo, da camponia. Um dos caminhos que o educador popular aponta para essa garantia é a formação sócio-política. Parte dessa formação é reconhecer as populações como sujeitos de direitos e aptos a participar ativamente na construção de políticas públicas para o campo. As construções coletivas, acreditamos, são capazes de enfrentar os obstáculos enfrentados por essas populações, que, como pudemos observar, são inúmeros.

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