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Discutindo saneamento rural na capital do pantanal e do agronegócio

Por Laura N. Pimenta

Berço da maior bacia inundável do mundo – o Pantanal mato-grossense – a região Centro-Oeste, localizada no planalto central brasileiro, apresenta fauna e flora diversificadas, bem como inúmeras comunidades tradicionais (indígenas, pantaneiros, quilombolas, assentamentos rurais) que disputam espaço com os grandes latifúndios do agronegócio – principal atividade econômica da região. Ao entrar na cidade de Cuiabá, capital do estado do Mato Grosso, somos recepcionados com uma placa que carrega essa contradição: “Cuiabá: capital do pantanal e do agronegócio. Bem vindo”.


A atividade agroindustrial, ao mesmo tempo em que trouxe para o Centro-Oeste uma nova dinâmica econômica, vem gerando drásticas consequências socioambientais para a biodiversidade da região. Em seus estudos sobre esses impactos ambientais e socioeconômicos no Pantanal, a Embrapa constatou que a remoção da vegetação nativa nos planaltos para a implementação de lavouras e de pastagens, sem considerar a aptidão das terras, bem como a adoção de práticas inadequadas de manejo e conservação do solo, são fatores que aceleraram os processos erosivos nas bordas do Pantanal. A consequência imediata tem sido o assoreamento dos rios na planície, o que tem intensificado as inundações e causado sérios prejuízos à fauna, flora e  economia local. Além disso, a pesada utilização de agrotóxicos nos planaltos adjacentes ao Pantanal é outra grave ameaça à biodiversidade dos ecossistemas do bioma e às populações que utilizam as águas pantaneiras para consumo.

Para falar sobre o saneamento rural nesta região é preciso entender não só essa contradição Pantanal x Agronegócio, mas também o elevado déficit de cobertura dos serviços de saneamento prestados às populações rurais.

Em relação ao abastecimento de água, o Censo Demográfico de 2010 aponta que:

  • 60% dos domicílios rurais da região e do Tocantins capta água de chafarizes e poços protegidos;
  • apenas 14% possuem ligação com rede geral de abastecimento
  • os 26% restantes captam diretamente de cursos de água sem nenhum tratamento ou de outras fontes alternativas geralmente inadequadas para consumo humano.

A situação é mais crítica quando são analisados dados de esgotamento sanitário:

  • mais de 80% dos domicílios depositam os dejetos em fossas rudimentares
  • os 20% restantes utilizam fossas sépticas, valas à céu aberto ou outros tipos de escoadouros.

No que se refere ao destino dos resíduos sólidos:

  • 13% são coletados diretamente por serviço de limpeza;
  • 5% colocados em caçamba de serviço de limpeza;
  • 66% queimados (nas propriedades);
  • 9% enterrados (nas propriedades);
  • 3% jogados em terreno baldio ou logradouro e
  • 4% tem outra destinação.

Para o professor e engenheiro sanitarista do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá (DSEI Cuiabá), Ricardo Chagas, este cenário contribui direta e indiretamente para o surgimento de doenças de transmissão hídrica, parasitoses intestinais e diarreias, as quais são responsáveis pela elevação da taxa de mortalidade infantil na região. Ele afirma que as ações de saneamento ambiental vão muito além da mera construção de estações de tratamento de água ou esgoto, elas são medidas de promoção da saúde das populações do campo, da floresta e das águas.

“A gente pensa que o saneamento se resume a uma obra, e que muita gente pensa isso. Eu costumo falar que o saneamento é uma medida de promoção da saúde da população. (…) Naquelas áreas que são providas de ações de saneamento, os indicadores de saúde são totalmente diferentes daquelas onde não tenho nada, onde não tem água tratada, não tem a disposição de esgoto. Os indicadores de saúde dessa população são todos vinculados às doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado. Então ele é um componente importantíssimo, como um elemento fundamental para a saúde pública do Estado Brasileiro. (…) os indicadores de doenças de veiculação hídrica relacionados ao saneamento são altíssimos. No caso aqui do Mato Grosso, de todas as doenças que são endêmicas, todas são relacionadas ao saneamento inadequado. (…) Aqui no Mato Grosso, cerca de 55% das doenças que ocorrem no estado são transmissíveis, e, dessas, cerca de 85% são relacionadas às doenças de veiculação hídrica”. (Ricardo Chagas, DSEI Cuiabá).

A Oficina da Região Centro Oeste e Tocantins

Considerando esse contexto deficitário, entre os dias 8 e 10 de maio foi realizada a Oficina da Região Centro Oeste e Tocantins. Batizada de Cacique Marcos Veron – líder da comunidade Guarani Kaiowá de Takuara, símbolo da luta desigual e violenta do povo Guarani pela retomada de suas terras, brutalmente assassinado em 2003 por funcionários de um grande fazendeiro – a Oficina aconteceu na Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia (FAET) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá, e reuniu cerca de 70 participantes.

A programação do primeiro dia da Oficina foi voltada para a contextualização do processo de construção do PNSR e da parceria Funasa/UFMG, e para as apresentações do panorama do saneamento rural da Macrorregião Centro-Oeste e estado do Tocantins. Além da exposição feita pela professora Sonaly Rezende, três representantes dos movimentos sociais presentes tiveram espaço de fala para relatar seus desafios e esperanças referentes ao saneamento rural. Na ocasião, o educador popular formado pela Escola Nacional de Formação Política da CONTAG (ENFOC) e agricultor familiar residente no município de Cáceres (MT), senhor Neuzo Antônio de Oliveira, elencou as dificuldades pelas quais as comunidades camponesas passam no que se refere ao assunto.

“Inicialmente vejo a possibilidade da gente ir melhorando a cada dia, a cada momento, essa realidade camponesa que é tão sofrida e que tem sido invisível aos olhos da sociedade. Às vezes fala da situação do campo, mas quando olha para o campo vê a macro-agricultura. Nós temos uma dificuldade imensa de mostrar para a sociedade quem são os camponeses, as populações pantaneiras, as populações que moram em região de morraria. (…) Por conta da invisibilidade, e por conta de uma das dificuldades que eu vejo, os gestores, eles precisam e vivem de voto e vão fazer as obras nos setores onde elas são vistas. E se o saneamento na área urbana às vezes não se investe, porque o que se coloca sob o chão ninguém vai tá vendo, imagine no setor rural, que ele tá completamente invisível. Então, não tem entusiasmo dos gestores de investir em saneamento rural. (…) Nós temos, antes de tudo, fazer com que a informação chegue no campo. E essa informação, pra chegar no campo, os vieses que nós temos dificultam extremamente. Também, para viabilizar, é preciso falar de projetos políticos. A quem o Estado ouve? Dificilmente é o agricultor familiar. Quem tem voz e vez nesse sistema não é a pequena agricultura, é o agronegócio. Aí eles querem que a pequena agricultura caminhe a reboque de um projeto macro. Eu sempre digo: eu não sou contra o projeto do agronegócio. Esse projeto pode ser muito bom pra eles, mas não se enquadra pra mim que sou agricultor familiar. Uma das coisas que precisa deixar bem claro é que o marketing do agronegócio é muito forte nesse setor, é que já o termo usado “agronegócio” já diz tudo, já sintetiza tudo. AgroNegócio: são pessoas que querem a terra pra ter lucro, pra negociar. Nós somos da AgriCultura. A gente preserva a cultura, nós queremos a terra pra viver com dignidade nela, no chão conquistado, e vamos produzir o nosso alimento, vender o excedente – também queremos ter lucro, mas vamos comercializar o excedente de produção pra manter as outras necessidades, que também nós temos.  (…) O que hoje a gente coloca como primordial: formação sócio-política. Não estou falando de política partidária, mas de cidadania. E eu, do campo, diria assim: de camponia, que é uma palavra muito pouco usada, mas, a cidadania já indica cidade e eu quero é melhorar a vida lá no campo”. (Neuzo Antônio de Oliveira, agricultor familiar e educador popular)

Diálogo de saberes

Imbuídos do compromisso de discutir as possibilidades e desafios que se apresentam para a implementação de um saneamento rural que atenda às necessidades das comunidades tradicionais, nos segundo e terceiro dias os participantes realizaram atividades em grupos de trabalho, nos quais buscou-se mesclar integrantes de movimentos sociais, de entidades civis, gestores públicos e  servidores da Funasa, de forma a conferir maior heterogeneidade representativa ao processo. Na primeira atividade do segundo dia os grupos apontaram os atores regionais responsáveis pela implementação e gestão das ações de saneamento rural, além de representar as vinculações e influências desses atores através de diagramas. A elaboração de tal representação permitiu que o trabalho posterior dos participantes de debater suas ideias e proposições a respeito das ações e políticas relacionadas aos quatro componentes do saneamento – abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos e das águas de chuva – fosse facilitado.

Estando com os atores mapeados e representados em diagramas, os grupos partiram para a composição de matrizes que demonstrassem os problemas e aspectos positivos do contexto atual e os desafios e potencialidades futuras do saneamento rural, considerando-se os quatro componentes citados anteriormente. Após uma tarde e uma manhã de intensas discussões nos grupos, foi realizada uma caminhada para socialização das matrizes elaboradas – as matrizes de cada grupo ficaram afixadas nas salas em que foram realizados os trabalhos e os participantes transitaram entre elas para observar e discutir as similaridades e as divergências presentes.

A Oficina Regional Centro Oeste e estado do Tocantins foi encerrada com uma plenária de avaliação, em que os participantes manifestaram suas opiniões e fizeram sugestões para as próximas oficinas. Na ocasião, Ricardo Chagas ressaltou a importância de se pensar o saneamento para além do “básico”: “Precisamos de um ambiente que seja saudável em toda a sua essência, que tenha alimentos sem contaminação de agrotóxico, com habitações construídas em locais salubres. Isso tudo é possível!”.

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