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O olhar do Sul sobre o saneamento rural: contestação, agroecologia e participação social

por Laura N. Pimenta

Com o objetivo de reunir diferentes atores sociais e construir com eles uma  visão regional sobre o saneamento rural,  entre os dias 3 e 5 de abril as equipes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e do Departamento de Engenharia Sanitária da UFMG (DESA-UFMG) realizaram a Oficina da Região Sul do Programa Nacional de Saneamento Rural, o PNSR, que está em construção.

Batizada de Roseli Nunes – camponesa, mártir da luta pela Reforma Agrária – a Oficina da Região Sul aconteceu na Escola Latinoamericana de Agroecologia (ELAA), localizada no Assentamento Contestado, no município da Lapa, Paraná.

A ELAA foi escolhida, pois permitiria a imersão – ainda que breve – dos participantes da oficina no campo, um dos espaços de produção e reprodução da vida, que representa uma faceta dos vários rurais existentes no Brasil. Além da infraestrutura ofertada, seria bastante simbólica essa aproximação física, ou seja, levar as pessoas a discutir saneamento rural em um contexto rural.

Fundada em 2005 através de uma iniciativa da Via Campesina, a ELAA é um ambiente de construção de uma educação popular, de formação político-social para o fortalecimento da agricultura camponesa e familiar e de luta por outro modelo de desenvolvimento para o espaço agrário brasileiro e latinoamericano. Atualmente, a Escola oferece cursos de Tecnólogo em Agroecologia e de Licenciatura em Educação do Campo, Ciências da Natureza e Agroecologia, que funcionam no sistema de alternância – o educando passa um período em sua comunidade e outro na Escola, o que permite que ele coloque em prática o conhecimento adquirido e traga demandas das suas regiões .

Foi nesse ambiente campesino que as atividades da Oficina Roseli Nunes se desenrolaram. Durante os três dias, 39 pessoas participaram da Oficina, sendo 12 membros da equipe de organização e 27 representantes de órgãos públicos (Superintendências da Funasa dos estados do Paraná, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina), entidades civis (Federações dos Trabalhadores na Agricultura dos estados do Paraná, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina), movimentos sociais (Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Paraná, Movimento dos Pequenos Agricultores do Paraná, Movimento Nacional dos Pescadores, Fórum da Pesca do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, Movimento Quilombola da Comunidade Paiol de Telha), prestadoras de serviço (Companhia de Saneamento do Paraná) e instituição de ensino superior e pesquisa (Universidade Federal do Paraná), todos vinculados a ações orientadas para as populações do campo, floresta e águas.

A oficina

A programação do primeiro dia da Oficina foi voltada para a contextualização do processo de construção do PNSR e da parceria Funasa/UFMG, e para as apresentações do panorama do saneamento rural da Macrorregião Sul e da metodologia de trabalho dos dias seguintes.O segundo dia de atividades foi iniciado com uma mística preparada pela ELAA, que celebrou elementos importantes da memória camponesa e deixou todos inspirados para iniciarem os grupos de trabalho. Nestes, buscou-se  mesclar integrantes de movimentos sociais, de entidades civis e  servidores da Funasa, de forma a conferir maior heterogeneidade representativa ao processo.

Os participantes foram estimulados a expor e a debater suas ideias e proposições a respeito do  abastecimento de água, do esgotamento sanitário,  do manejo dos resíduos sólidos e das águas de chuva, de modo a evidenciarem, por meio de matrizes, os problemas e aspectos positivos do contexto atual e os desafios e potencialidades futuras.

Matrizes

Após um dia de trabalho exaustivo nos grupos, foi realizada uma plenária para socialização dos resultados das matrizes elaboradas. Dentre os muitos pontos abordados, foram levantadas debilidades como a atual contaminação das águas pelo uso de agrotóxicos; a pouca abordagem das áreas rurais nos planos municipais de saneamento; a falta de integração entre os atores responsáveis pelo saneamento; a ausência de envolvimento da população na elaboração dos planos municipais; a carência de articulação entre os projetos executados pelas diferentes secretarias; o uso de materiais impróprios nas redes de abastecimento de água; o lançamento indevido dos efluentes de esgoto nos cursos d’água. No que se refere às ameaças, a privatização do saneamento, a continuidade da contaminação dos mananciais, a criação de legislações restritivas, a criminalização dos movimentos sociais e o aumento do êxodo rural foram elementos citados nas matrizes. Em termos de fortalezas e oportunidades, a agroecologia foi citada como um expoente da região Sul, ao lado da gestão compartilhada dos sistemas de saneamento e do uso de tecnologias simplificadas para tratamento dos efluentes.

Atores

Os grupos apontaram também os atores regionais fundamentais para o processo de implementação do PNSR, indicando suas respectivas competências. Cada grupo elaborou dois diagramas, um  representando quem está envolvido na realização de ações de saneamento rural no presente e como se interrelacionam, e  outro  representando um cenário ideal, com o intuito de mapear o que se espera para o futuro em termos de atores, dos papéis que devem desempenhar no saneamento rural e de seus vínculos, com vistas à implementação e gestão do Programa na região. Alguns participantes relataram que durante a dinâmica puderam compreender o quão complexo é lidar com o saneamento e quais instituições são efetivamente responsáveis pela implantação do mesmo.

Campos da Imagem

Paralelamente à programação da Oficina, a equipe de comunicação do PNSR fez a montagem da exposição “Campos da Imagem: construindo o PNSR”. Ao visitarem 18 comunidades rurais de distintas regiões do Brasil, procurando conhecer sua situação sanitária, as equipes de campo do PNSR, interpeladas pelas paisagens e situações que encontraram, realizaram um registro fotográfico diferenciado daqueles realizados em pesquisas puramente tecnicistas – buscaram apreender, com as lentes das câmeras, os aspectos sensíveis, a relação dessas comunidades com o saneamento, seus modos de vida, suas lutas cotidianas. São 40 dessas imagens que compõem a exposição. Imagens que transbordam sensibilidade, que dizem da humanização do saneamento e que contribuem para a costura da rede simbólica do Programa.

Relatos

A equipe de comunicação também aproveitou a ocasião da Oficina para realizar entrevistas com alguns participantes, a fim de colher relatos sobre a situação do saneamento rural em suas comunidades através de suas histórias de vida, e para visitar uma das agroflorestas do assentamento. Os relatos concedidos trouxeram questões sensíveis e expuseram a luta cotidiana dos camponeses para a manutenção do modo de vida no campo, para a garantia dos seus direitos básicos e por um saneamento que atenda às suas necessidades específicas.

Noemi Margarida Krefta, do Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina,

“Participar das oficinas, pra nós, significa uma responsabilidade e também uma oportunidade de poder tá colocando o que o movimento entende por saneamento rural… e também a questão, assim, da gente pleitear pra que esse saneamento ele seja um saneamento de forma bem sustentável. E quanto mais ecológico, mais perto das nossas necessidades, porque a gente entende que na agroecologia a gente faz um trabalho no ambiente como um todo. Da água, do solo, dessa questão do esgotamento e dos resíduos, isso tudo aí é trabalhado dentro da agroecologia. E pra nós, isso significa fazer toda uma luta para que o poder público entenda essa realidade de vida que é diferente da realidade urbana. As necessidades são outras. O modo da população se organizar é diferente”

Dona Maria de Lima, militante do MST desde 1984 e integrante do Coletivo de Mulheres do Contestado

“Há a necessidade de que a gente multiplique os lutadores dentro da área, lutadores que tenham cuidado com o saneamento básico e com o trabalho de biofossa, de biodigestores, como queira… Que a água do banheiro e dos chuveiros saiam para a natureza sem agressão. Precisamos aprender como usar esses resíduos em benefício da própria natureza, o que ainda está distante de nós, mas estamos em busca disso”.

Antônio Capitani, militante do MST assentado no Assentamento Contestado a 18 anos

“Eu acho que é um tema que a sociedade como um todo tem que discutir. Não somente pra nós aqui do assentamento, mas é um tema que tem que ir pra dentro das escolas, um tema que a nova geração que vem aí ela tem que olhar…”. “um campo fraco, a sociedade mais fraca vai ficar”.

Esses e outros depoimentos legitimam a importância de se construir o PNSR de forma conjunta e primando pela troca de saberes. Muita estrada ainda deve ser percorrida para que um saneamento rural adequado às necessidades das populações do campo, das florestas e das águas seja implantado. Mas fica claro que cada passo dado nessa caminhada deve ser coletivo e atento às diversas vozes que clamam pelo direito básico ao saneamento.

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