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Diversidade de territórios e populações desafia política de saneamento rural

Para falar em saneamento básico em um país de dimensões continentais como o Brasil, é necessário pensar nas diversas necessidades e possibilidades de cada região – e de cada bioma.

por Priscila Carvalho

Existem diferenças na disponibilidade de água usada para consumo humano, animal e para a produção. Há também distintas soluções para destinação de esgotos e resíduos, que variam a depender da quantidade e períodos de chuvas, da proximidade dos rios e do mar, da profundidade dos lençóis freáticos. Essa pluralidade de experiências foi relatada pelas lideranças de movimentos sociais e sindicatos rurais que estiveram reunidos em Belo Horizonte para discutir saúde e saneamento rural, no final de julho. O texto abaixo passeia por algumas regiões do país trazendo exemplos de como população e território precisam ser levados em conta nas ações de saneamento básico.

Tem água no semiárido!

Foto: Leo Drumond / Nitro


No Semiárido nordestino a oferta de água é questão antiga. Acesso à água, ali, significa também a independência dos caminhões-pipa – que custam muito e, por décadas, mantiveram as populações rurais dependentes dos interesses de políticos da região. Mais recentemente, a construção de cisternas – estimuladas pelo Programa Um Milhaõ de Cisternas, o P1MC, uma iniciativa da sociedade civil e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) – alterou o cenário de falta de água nas épocas de estiagem, com fortes impactos também na saúde pública na área rural, como apontou Felipe Falcão, da Federação de Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape). No seu estado, ele relata que “a quantidade de doenças que incide na população infantil caiu muito. As cisternas tiveram impacto na distribuição de renda, inversão do êxodo rural, na saúde pública”, E, preocupado com a continuidade da experiência, defendeu: “É importante manter, se não for possível ampliar”, A experiência reafirma dados oficiais, que indicam que água em quantidade e qualidade, higiene e esgotos reduzem em 30% a 35% a diarreia infantil – uma das principais causas da morte nos primeiros anos de vida. Os dados foram apresentados por Léo Heller, pesquisador da Fiocruz, professor voluntário da UFMG e relator da ONU para o direito humano à água e ao saneamento.

No centro-oeste, fossas de bananeira para evitar contaminação

foto: Rafael Budni

No Centro-Oeste, região de cerrado, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Goiás (Fetaeg) teve de se adaptar às condições de chuva, água e do solo na implementação do programa Minha Casa Minha Vida Rural entre agricultores familiares. Para conviver com períodos bem marcados de chuva, alternados com períodos de seca, foram instaladas cisternas nas residências, que armazenam água e garantem o abastecimento no período de estiagem. Em alguns lugares, para conviver com o fato de que o estado tem lençóis freáticos pouco profundos, foi necessário evitar as fossas comuns. De acordo com Sueli Pereira, da Fetaeg, “Quando vem chuva, a água das fossas sobe e vem o problema de transbordar. A solução que encontramos foi a fossa bio-séptica, chamada de fossa de bananeira, que conseguiu resolver o problema de contaminação dos lençóis freáticos e das famílias”.

Sul e Sudeste: a luta para permanecer nos territórios

Foto: www.preservareresistir.org

No Sul e Sudeste, onde a falta de água não era comum – pelo menos até recentemente – as populações se deparam com outros problemas. Um deles é que, quando chegam os serviços de saneamento, aumenta o interesse pelos territórios das comunidades tradicionais, que passam a ter que lidar com a pressão de pessoas e empresas interessadas na compra de suas terras e com o turismo. É o que acontece quando são construídas estradas, aumentando o contato de comunidades que antes eram de difícil acesso. O processo se repete quando chega luz, água e esgoto. Manter as comunidades nos territórios passa a ser mais um dos desafios, como aponta Vagner do Nascimento, do Quilombo Campinho da Independência, em Paraty, e do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra/Paraty/Ubatuba.

O município de Paraty, apesar de ter um centro conhecido pelas construções coloniais, até poucos anos não tinha tratamento de água e esgotos. A entrada do tema na pauta municipal levou o poder público a estar presente nas comunidades. Nesse processo, passaram a atuar conjuntamente órgãos públicos, como a Fiocruz e a Funasa, e as comunidades locais. Na praia do Sono, esses atores estão construindo projetos de saneamento ecológico com a participação da comunidade, que tem espaço para adaptar e transformar tecnologias sociais.

As organizações locais souberam aproveitar a mudança para trabalhar questões de identidade, autoestima. “Há discussão sobre controle social, direito, conselhos. Conseguimos abrir caminhos para discutir saneamento e seu vínculo com a saúde. Por meio do saneamento estamos discutindo território, agroecologia, turismo comunitário, não como vítimas mas como sujeitos”, conta Vagner, sem esconder o orgulho pelo andamento das atividades. Para ele, a comunidade vem conseguindo discutir um modelo de desenvolvimento para o território que vai na contramão do modelo de desenvolvimento que retira as populações de seus locais.

No entanto, nem sempre a chegada das políticas públicas ocorre sem tensões com as práticas das comunidades. Além da pressão sobre territórios, a chegada das políticas públicas também pode trazer rupturas com algumas práticas culturais – algo que precisa ser discutido com as comunidades que, por décadas – ou séculos – apoiaram-se em seus saberes tradicionais de cuidado com as pessoas, os animais, o ambiente. “Esse saber não de Telha, no Paraná, e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Conaq.pode ser menosprezado”, destaca Isabela da Cruz, da Conaq  comunidade Invernada Paiol

Ela conta que a comunidade cuida do olho d’água que a abastece – pelo menos duas vezes por semana, é necessário visitar a nascente, limpar, proteger, garantir que animais estejam afastados. A criação de pequenos animais como galinhas, importante para a alimentação comunitária, também é feita com cuidados de higiene.  “A gente se vira com práticas tradicionais – emplasto, chá, defumação. Sabemos que os animais não podem ficar muito perto da casa”, afirma ela, lembrando que o conhecimento é repassado pelas gerações mesmo quando não vem acompanhado de explicações que justificam as práticas. “Acho que devia valorizar mais as práticas culturais e educação da comunidade.”

No Norte, a necessidade de um saneamento que entenda o ritmo das águas

foto: Bernardo Vaz / Aicó Culturas

Na região Norte, a diversidade de situações também é grande. Indígenas, ribeirinhos, quilombolas, camponeses de fronteira, com ou sem-terra, que migraram de outras regiões do país. As distâncias na região também podem ser grandes – há vilas, há comunidades, mas há também pessoas dispersas para as quais modelos pensados para cidades não têm como funcionar. Há, ainda, a sazonalidade dos rios, que demarcam regiões alagadas e áreas de plantação ao longo do ano. Cada uma dessas características traz desafios para a política de saneamento – as fossas, por exemplo, precisam ser adaptadas às cheias e vazantes.

“O bioma amazônico tem partes que são várzea, água chega e sai; tem outras que ficam seis meses submersas, No período de chuva quem está em cima fica lá, mas no período de baixa, como faz?”, questiona Milton Santos, o Baía, da Confrem – Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas. Ele defende que as particularidades sejam levadas em consideração e que é necessário tempo e trabalho conjunto entre poder público e comunidade para definir o modelo de saneamento adaptado a cada local.

1 Comentário
  • Rachel
    Publicado em 13:38h, 25 outubro Responder

    Ótima leitura!

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