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Discurso de Abertura da Oficina Nacional do PNSR por Sonaly Rezende

Boa tarde a todos e a todas, gostaria de dar-lhes as boas vindas em nome de toda a equipe que trabalha na elaboração do Estudo para a concepção do PNSR. Atendo como co coordenadora do Projeto, juntamente com o Prof. Léo Heller, que não pôde estar presente por estar em uma missão da Relatoria da ONU, em Portugal, tratando, dentre outros aspectos, de saneamento rural; e juntamente com um grupo coordenador muito afinado e unido. Considero a equipe que atua na elaboração do PNSR um time coeso e comprometido com os seus resultados, e é em nome dessa equipe que desejo me manifestar. Sei da grande responsabilidade que isso envolve, mas, o fato de estarmos trabalhando de forma tão participativa e de estarmos construindo genuinamente, coletivamente, o estudo que subsidiará o PNSR, me deixa mais à vontade para representar esse grupo.
Tenho pensado, ao longo de minha trajetória acadêmica, na perspectiva histórica do saneamento e acredito que um breve resgate traria luz para a compreensão do que estamos vivendo neste momento. Elementos estruturais para a compreensão do saneamento se fazem necessários: entender a sua natureza individual ou coletiva; entender a ruralidade aplicada ao saneamento, considerando o rural em uma perspectiva de evolução temporal e através de suas relações com o urbano; vislumbrando o rural como um espaço no qual estão presentes as populações do campo, da floresta e das águas, populações indígenas, populações que preservam suas raízes e tradições e que convivem entre si e partilham o mesmo território com o agronegócio, a mineração, os grandes empreendimentos, além de serem afetadas pelos impactos da urbanização. Tenho buscado entender como se constitui o atendimento às demandas de saneamento segundo os mais diversos interesses constituídos, desde a visão dos poderes dominantes até a construção solitária e individual do mais isolado habitante do interior do País.

Após períodos nos quais o desenvolvimento das ações foi guiado, ora pela compreensão do saneamento como ação de proteção à saúde, ora como ação provedora de desenvolvimento econômico, partimos da entrada do poder público em ação no saneamento, em substituição à iniciativa privada, no início do século XX, em razão da limitada abrangência desse modelo de gestão, introduzido por falta de opção, dada a clara baixa capacidade técnica e operacional existente no País. Mas, atuar, de maneira direta, na gestão do saneamento nos municípios não se mostrou uma via capaz de transformar o panorama sanitário vigente, e, em meados do século XX, em meio a um período de intensa urbanização, como consequência da industrialização, emergiu a visão empresarial do saneamento, com atenção às demandas ligadas ao grande capital, e não como uma política especial, com fundamentos amplos de uma política social, mas uma política de provisão de serviços às áreas urbanas, para que o projeto capitalista então deflagrado pudesse seguir adiante. 

O primeiro Plano Nacional de Saneamento, o PLANASA, emerge nesse contexto, por um lado, amplificando o foco no saneamento urbano, com amplos investimentos em recursos humanos e econômicos nas cidades de economia mais dinâmica, tendo como suporte o financiamento do FGTS e um modelo centralizado, que se tornaria hegemônico, pautado na autossustentação tarifária e no subsídio cruzado, tendo como agentes executores as Companhias Estaduais de Saneamento Básico. As metas do PLANASA fixaram-se no aumento da cobertura de redes de água, ação tipicamente urbana, pela sua característica de aderir-se a economias de escala. Após a euforia inicial, em uma década de abundância – o chamado milagre econômico -, seguiu-se um momento de exacerbada crise que fez ruir os pilares do PLANASA (FGTS, BNH) trazendo o contingenciamento de recursos às Companhias Estaduais. Durante seu momento de ribalta, o PLANASA e seus instrumentos não fizeram nenhuma alusão ao Saneamento Rural, e este tema ficou esquecido, salvo as expedições dos sanitaristas brasileiros ao interior do País, durante as primeiras décadas do Século XX, em grande medida patrocinadas por interesses outros que não os de “salvar aquela gente”, como então proclamavam. 

Em meio ao dito, notado e atestado fracasso do plano de feições empresariais até mesmo no atendimento de seus limitados objetivos, no que tange ao plano social, surge e ganha força no País, em meados da década de 1990, nova corrente pró privatização, sob a forma do neoliberalismo econômico, que negando o fracasso da experiência vivenciada no passado e desinteressando-se dos malogros de experiências recentes de outros países, avança rumo ao favorecimento da entrada da iniciativa privada no setor de saneamento no Brasil. 

De outro lado, em meio a mudanças profundas no plano político do País, emerge uma corrente que milita em favor do estabelecimento de ações que garantam a proteção social e a distribuição de renda no País, tendo como legado e mote principal, a Constituição de 1988, que estabelece uma nova fronteira para a instalação de direitos humanos. Em uma reviravolta em termos de legado político, a partir de 2003, estabelece-se um Governo que adota, junto com atores importantes da sociedade, um pacto pelo saneamento básico, que resulta na institucionalização do Setor e na criação de um marco legal para ele, trazendo em seu bojo orientações pró universalização do saneamento, com equidade, integralidade, sustentabilidade, em uma perspectiva de intersetorialidade, resultando em importantes aportes para o saneamento nas áreas rurais, reconhecendo-o, legitimando-o como uma ação de direito humano e de responsabilidade do poder público; institui a obrigatoriedade de elaboração do Plansab, que, por sua vez, manifesta seus desígnios a partir de três programas, um deles, o PNSR.

Por isso, estamos fortemente imbuídos do espírito de construção desse programa, de forma aberta, buscando apoiar-nos nos desejos dos principais interessados e da sociedade, em geral, e contando com o apoio das instituições governamentais, para que o conteúdo do Programa reflita as reais necessidades das pessoas que têm sido historicamente destituídas de seus direitos, pelo simples fato de pertencerem a um grupo excluído das ações.

É importante nesse momento de conjugação de esforços e construção coletiva, fazer menção a uma ameaça concreta representada pela reversão das políticas sociais, respaldada pelo primado do equilíbrio fiscal, ora defendido. Tal ameaça se reveste concretamente de duas vertentes: a da privatização e a da austeridade fiscal. Sabemos que a lógica da mercantilização do saneamento é incompatível com o desenvolvimento de ações de saneamento rural, no plano nacional, primeiro porque essas ações não geram excedente econômico e, segundo, porque não haverá agentes privados que acreditem no Saneamento Rural como meio de produção e reprodução do capital. Há uma explícita orientação privatista sendo consolidada no País e, a despeito de parte de ações dessa natureza poderem se tornar bem-sucedidas, o que nos preocupa é a privatização como modelo dominante, algo que nenhum país do mundo tem buscado na atualidade. Uma proposta de mercantilização do saneamento é uma proposta que vai na contramão da priorização do Saneamento Rural. 

Por outro lado, há o efeito nefasto, inevitável, da proposta de emenda constitucional elaborada para forçar um congelamento orçamentário como demonstração de prudência fiscal, que, sem sombra de dúvida trará grandes prejuízos aos mais pobres nas próximas décadas. O Relator especial da ONU para assuntos relacionados à erradicação da extrema pobreza, Philip Alson, fez uma declaração sobre as medidas de austeridade fiscal e a PEC 55, que visa à congelar o gasto social nas áreas de saúde e da educação, como estratégia para aumentar a confiança de investidores e reduzir a dívida pública e a taxa de juros o que, pretensamente, ajudaria a tirar o país da recessão.  Segundo o referido relator “Se adotada, essa emenda bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, portanto, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais”. Colocará, pois, o Brasil, em uma categoria única em matéria de retrocesso social. Além disso, o relator assinala que a emenda “vai atingir com mais força os brasileiros mais pobres e mais vulneráveis, aumentando os níveis de desigualdade em uma sociedade já extremamente desigual” e assinala que para o Brasil os direitos sociais terão muito baixa prioridade nos próximos vinte anos.

Temos aqui a importante missão de refletir e discutir sobre as diretrizes para o saneamento rural nos próximos vinte anos e não podemos deixar de considerar a conjuntura política e econômica vigente. O desafio é imenso, mas, a esperança que nos move é maior. Desejo que nosso encontro nos próximos dias possa nos apontar caminhos e que essa união se consolide para que nossos desejos possam se fortalecer e se tornarem realidade.

Sonaly Cristina Rezende Borges de Lima
Professora do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental – DESA
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

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